Quando uma filha de Oxum não consegue segurar seu homem, tem um problema sério. Apelar para as falanges da mãe periga ser pouco, é o que está acontecendo agora, e ai de mim se Alexandre não me quiser mais. Sou capaz nem sei de quê.
Sempre que vou a Oxum ela me atende, nunca falha, mas há uma primeira vez para tudo. Filha ingrata, eu? Há mais de três semanas que cozinho o feijão fradinho dela, os ovos dela. Tudo o que dona Creuza diz para fazer, eu faço. Depois? Depois nada. Só aquele cheiro de comida que o fogo transformou em devoção, e de vez em quando uma ponta de descrença, que espanto cantando Yê-Yê no ar vazio. Resposta alguma. Oxum agora é silêncio.
Alexandre me largou faz quase um mês. Disse que eu, enquanto dormia, comecei a gemer e falar um nome. Zeca. Não sei desse sujeito há mais de dois anos, respondi. E daí que não, se ele existe?, resmungou. Sem coragem de perguntar mais, preferiu dizer que não fica com mulher que geme por outro.
Era terça-feira, quase sete da manhã. A discussão foi pura angústia, ele me olhava com ódio, a boca vociferante exalando o álcool da noite anterior, que acabara poucas horas atrás de um jeito estranho. Havíamos saído juntos, na Lapa o samba mesmo na segunda-feira, eu usava um vestido vermelho curto, as sandálias com salto deixavam a coluna ereta e a confiança plena. Alexandre e a mania de apertar o passo quando de mãos dadas comigo, minhas pernas num esforço de alcançar seu ritmo. Sou gostosa, eu disse a mim mesma, preciso continuar empinada, de salto tudo é mais difícil, mas ainda assim eu posso. Mesmo com o cheiro de mijo rondando os arcos, desertos às três da manhã, eu achava que podia. Eu pude, depois não mais, o salto do pé esquerdo preso entre duas pedras portuguesas, uma força a me puxar para baixo.
Antes que eu pudesse buscar apoio nos braços do homem, a Lapa foi mais forte. Impôs a mim uma queda rápida e inevitável. Todo o meu lado direito tombando sobre o meio-fio, os poucos que passavam parando o olhar. Uma mulher de cabelos cor de fogo, um mendigo gordo que mora por ali. Assustados, me encaravam. Havia algo entre mim e o asfalto, e então voltei os olhos para o chão. Sob meu braço um ebó para Exu. Velas queimadas só até a metade e que eu, com o tombo, tratei de derrubar. O mel, a farofa, a cachaça derramada, tudo era uma coisa só, não mais o padê. Emaranhado, eu a culpada, eu a causa. Caída sobre uma convocação.
Os olhos de Alexandre refletiam pena – foi o que encontrei quando me dignei a atender sua voz. Espera, eu disse, pelo menos as velas eu preciso arrumar. A vermelha ainda acesa. Dá licença, Exu, foi acidente, deixa eu acender a preta com a que não se apagou.
Vamos embora, vem, me dá a mão, Alexandre pedia. Estava com medo. Segurei em seu braço e fiquei de pé. O salto havia quebrado. Talvez Exu quisesse as sandálias. Deixei-as lá, quase tão altas quanto o meio-fio onde se escoraram.
O asfalto pinicava meus pés.
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Acima de mim o céu de inverno embala uma nuvem. Não vejo Deus. Ninguém para me ajudar. Não tem Alexandre, nem Oxum, nem Creuza. Exu não perdoou – cair como uma tola no Largo da Carioca depois de assistir à missa de Santo Antonio é prova disso.
Nunca fui devota de santo branco, mas não custava tentar. Trouxe os pães, tantos, acordei cedo, jejuei e consegui chegar para a primeira missa. Se depois daquela segunda-feira tudo passou a dar errado, se o homem não quis mais saber de mim, se a mãe da água passou a me ignorar, talvez Antonio em seu dia.
A igreja lotada, os franciscanos felizes, gente cheirando a cansaço, o ouro reluzindo com indiferença. E eu. Quero meu homem de volta, santo. Antonio casamenteiro, Antonio dos pobres, Antonio-Exu.
Comunguei. A hóstia recebi de um frei muito jovem. O corpo de Cristo, ele disse. E o meu, para onde vai, caído no Largo da Carioca? Não sei, mas preciso acreditar. Uma mulher como eu precisa acreditar.