sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O voo


Hoje de manhã, quando Marta decidiu morrer, logo descartou as duas primeiras opções que lhe vieram à mente: um tiro no peito e um coquetel de remédios. Maneiras nojentas demais de deixar o mundo. Melhor o gás.

Além de sabê-lo indolor, tem certeza de que será um método bem mais eficaz que os outros dois, esses sim desastrosamente experimentados em outros tempos. O que poderá dar errado em abrir a válvula do aquecedor de água, esticar o cobertor sobre o piso frio do banheiro e se deitar ali?

Não sabe em quanto tempo vai desmaiar, nem se morrerá dez, trinta ou cinquenta minutos depois. Poderia ter pesquisado sobre o assunto, mas prefere não saber de nada. Acha ridículo quem se especializa em métodos de suicídio, e talvez por isso continue viva. Acredita, ainda assim, que o suicida precisa fazer a sua parte para chamar atenção da morte. Dessa vez, Marta se basta com um certo ar blasé na ação de morrer com um livro, mas não um livro qualquer. Quer adormecer embalada pelo cheiro de gás enquanto lê a Odisseia.

Desde que começou a lê-la, decidiu que vai morrer em grande estilo, como uma deusa, mas parece ter se esquecido de que deusas não morrem. Imagina-se voando como o faz Atena na Rapisódia I. “Atou aos pés belas e divinas sandálias de ouro que, com a rapidez do vento, a levavam por sobre as águas e a terra imensa.”

Sente desejo de morrer por essas palavras, ou melhor, como elas. Atena, seu voo e seu rumo. Com que vontade desce do Olimpo para a Terra? E com que força transforma-se em pássaro e volta para o monte após uma temporada entre os homens?

***

São quatro horas de uma tarde de sábado. Marta está de pé, em frente ao espelho do banheiro, e penteia os cabelos curtos. Sua pele é a mesma de sempre – poucas rugas, olheiras fundas, nenhuma surpresa.

O gás faz seu trabalho em silêncio, mas após olhar para os pés ela desconfia se a Morte está realmente a caminho. Desconfia também, e de repente, de sua certeza em querer morrer, embora seja essa a terceira tentativa de suicídio em cinco anos.

Quando a deusa se transforma em pássaro para retornar à morada celeste, Marta fecha os olhos, imagina o próprio voo rumo ao Monte Olimpo. Mas não vai a lugar algum. Encara os ladrilhos brancos, continua a ler. Encorajado pela deusa, Telêmaco, o filho de Ulisses, está diante do conselho dos anciãos de Ítaca. Quer convencer os velhos a deixá-lo percorrer os mares em busca do pai.

Minutos depois, Marta volta algumas páginas em busca do pássaro-Atena. Mais uma vez os olhos se fecham para abrirem logo em seguida. A Morte não chega e dá lugar à dúvida: morrer ou permanecer viva?

A suicida não sabe se quer mesmo morrer. Deixa de acreditar que voará como Atena e imagina o quão terrível será se, em vez de pássaro, seu corpo continuar exatamente como antes – ainda mais corpo sobre o edredon, tão sólido e imóvel como o livro que tem entre as mãos. Teme não ser acolhida por braços luminosos, fortes e divinos, nem sentir a mais vertiginosa das certezas, a de voltar ao seu pequeno monte. Então percebe que os deuses podem não querê-la por perto e que é inútil correr o risco.

Levanta-se, não sem antes dobrar a folha da página que está lendo. No espelho, vê uma mulher mais feia e sábia que antes. Está arrependida e parece dotada da força que só a literatura é capaz de incutir. Ainda que debilmente, deseja a vida. Quer ler toda a Odisseia.

Bastante tonta, desliga o gás, respira fundo e pega o livro. Em quanto tempo lerá tudo aquilo? Três, cinco, sete dias? Não importa, lerá o mais rápido que conseguir. Algo lhe diz que será outra quando Ulisses, o astucioso, cumprir seu destino. Vai ver, a intensidade com que ele luta pela vida pode ser útil à sua existência de ex-suicida.

Mal começa a andar, escorrega no edredon. Seus braços não alcançam a pia, enganados pelas pernas, tão mais rápidas. A mulher cai como um títere, o corpo projetado rapidamente para trás impele a cabeça a chocar-se com força contra o primeiro dos quatro degraus de mármore que separam o banheiro do quarto.

Marta sangra, mas não sente. Está desacordada e assim permanecerá para sempre, pois, embora tenha desligado o gás, não chegou a abrir o basculante do banheiro. Todo ar que vai respirar enquanto viver conterá o discreto e bem-sucedido assassino de uma ex-suicida desprevenida e sem sorte.

Não irá a lugar algum, nem mesmo cruzará a pequena fronteira de mármore que agora a separa do livro, arremessado para o quarto num voo canhestro após escapulir de sua mão. A Odisseia caiu com as folhas viradas para baixo, num ato de resistência e bravura, embora ninguém, a não ser o chão, possa lê-las agora.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

V


Os cantos das minhas unhas são fundos. Isso me ajuda em quase nada, a não ser quando se trata de seduzir um determinado tipo de mulher: a que tem por hábito prestar atenção a tudo e raramente fazer concessões. Repara nas unhas, sempre bem cortadas, nas cutículas serenas, nos dedos grossos. Comenta, não sem alegria, as veias saltadas.

Ana, no entanto, não se contentou com isso. Há três dias deixou sua marca na combinação de assepsia e masculinidade que cultivo há anos. Atordoada em seu ciúme, apontou um descascador de legumes, desses de aço inox, em minha direção. Como se possuísse uma arma mortal, investiu duas vezes o objeto contra o dorso da minha mão direita, escrevendo um V com sangue e lascas de gengibre.

O que mais faria com seu homem após flagrá-lo flertando em frente à barraca de legumes de manhã cedo, bem no começo da feira? Dar a ele uma vingança à altura do acinte. Acho que se arrependeu do que fez; suas olheiras estão mais fundas desde então e ela não se cansa de repetir me perdoa, me perdoa pelo amor Deus.

Pra mim, isso é pouco. Menos ainda quando penso que o remorso pode não vir do couro que me arrancou, mas do medo da marca que permanecerá aqui. Será que isso vai cicatrizar direito? Será que a mão dele vai chamar ainda mais atenção?, Ana pergunta a si mesma, em silêncio.

Por enquanto, esse V não passa de uma vagina inacabada, uma vagina que não pode falar. Nem coragem de fazer a racha você teve, eu disse a ela, o sangue escorrendo juntamente com a água gelada na pia da cozinha.

Hoje me acusa novamente, dessa vez sem motivo. Tem certeza de que eu comi a ruiva. Se comi, não lembro, respondo com cinismo. Ela respira fundo, olha ao redor e baixa o tom de voz. No entanto, não há ninguém conhecido: homens e mulheres bebem seu café como se estivessem sozinhos em casa. Ana se constrange perante rostos estranhos, esses sim dignos de alguma compostura.

Agarra a minha mão, coberta por gaze branca e dois pedaços de esparadrapo, forçando-me a baixá-la e deixar o copo sobre a mesa. Vejo sua boca entreabrir-se e, num jorro, deixar sair perdão, nunca duvidei de você, não de verdade, você sabe que eu não posso te ver conversando com mulher, que eu fico louca, vamos pedir a conta, eu cuido da ferida, passo uma pomada, prometo que vai sarar. Vem comigo, depois deixo você fazer o que quiser, deixo até você ir embora.