sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A memória da dor


Raimundo sonhou que via um porco morrer.
Sobre o dorso do animal uma mulher cravara uma faca.
Mas em vez do golpe definitivo, ela deixou que agonizasse.
Sangue saindo aos poucos, sofrimento destilado.

Raimundo sentiu pena, medo e vergonha, os sentimentos que o fariam recordar da infâmia ao acordar.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Mulher de pouca fé

Quando uma filha de Oxum não consegue segurar seu homem, tem um problema sério. Apelar para as falanges da mãe periga ser pouco, é o que está acontecendo agora, e ai de mim se Alexandre não me quiser mais. Sou capaz nem sei de quê.

Sempre que vou a Oxum ela me atende, nunca falha, mas há uma primeira vez para tudo. Filha ingrata, eu? Há mais de três semanas que cozinho o feijão fradinho dela, os ovos dela. Tudo o que dona Creuza diz para fazer, eu faço. Depois? Depois nada. Só aquele cheiro de comida que o fogo transformou em devoção, e de vez em quando uma ponta de descrença, que espanto cantando Yê-Yê no ar vazio. Resposta alguma. Oxum agora é silêncio.

Alexandre me largou faz quase um mês. Disse que eu, enquanto dormia, comecei a gemer e falar um nome. Zeca. Não sei desse sujeito há mais de dois anos, respondi. E daí que não, se ele existe?, resmungou. Sem coragem de perguntar mais, preferiu dizer que não fica com mulher que geme por outro.

Era terça-feira, quase sete da manhã. A discussão foi pura angústia, ele me olhava com ódio, a boca vociferante exalando o álcool da noite anterior, que acabara poucas horas atrás de um jeito estranho. Havíamos saído juntos, na Lapa o samba mesmo na segunda-feira, eu usava um vestido vermelho curto, as sandálias com salto deixavam a coluna ereta e a confiança plena. Alexandre e a mania de apertar o passo quando de mãos dadas comigo, minhas pernas num esforço de alcançar seu ritmo. Sou gostosa, eu disse a mim mesma, preciso continuar empinada, de salto tudo é mais difícil, mas ainda assim eu posso. Mesmo com o cheiro de mijo rondando os arcos, desertos às três da manhã, eu achava que podia. Eu pude, depois não mais, o salto do pé esquerdo preso entre duas pedras portuguesas, uma força a me puxar para baixo.

Antes que eu pudesse buscar apoio nos braços do homem, a Lapa foi mais forte. Impôs a mim uma queda rápida e inevitável. Todo o meu lado direito tombando sobre o meio-fio, os poucos que passavam parando o olhar. Uma mulher de cabelos cor de fogo, um mendigo gordo que mora por ali. Assustados, me encaravam. Havia algo entre mim e o asfalto, e então voltei os olhos para o chão. Sob meu braço um ebó para Exu. Velas queimadas só até a metade e que eu, com o tombo, tratei de derrubar. O mel, a farofa, a cachaça derramada, tudo era uma coisa só, não mais o padê. Emaranhado, eu a culpada, eu a causa. Caída sobre uma convocação.

Os olhos de Alexandre refletiam pena – foi o que encontrei quando me dignei a atender sua voz. Espera, eu disse, pelo menos as velas eu preciso arrumar. A vermelha ainda acesa. Dá licença, Exu, foi acidente, deixa eu acender a preta com a que não se apagou.

Vamos embora, vem, me dá a mão, Alexandre pedia. Estava com medo. Segurei em seu braço e fiquei de pé. O salto havia quebrado. Talvez Exu quisesse as sandálias. Deixei-as lá, quase tão altas quanto o meio-fio onde se escoraram.

O asfalto pinicava meus pés.

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Acima de mim o céu de inverno embala uma nuvem. Não vejo Deus. Ninguém para me ajudar. Não tem Alexandre, nem Oxum, nem Creuza. Exu não perdoou – cair como uma tola no Largo da Carioca depois de assistir à missa de Santo Antonio é prova disso.
Nunca fui devota de santo branco, mas não custava tentar. Trouxe os pães, tantos, acordei cedo, jejuei e consegui chegar para a primeira missa. Se depois daquela segunda-feira tudo passou a dar errado, se o homem não quis mais saber de mim, se a mãe da água passou a me ignorar, talvez Antonio em seu dia.

A igreja lotada, os franciscanos felizes, gente cheirando a cansaço, o ouro reluzindo com indiferença. E eu. Quero meu homem de volta, santo. Antonio casamenteiro, Antonio dos pobres, Antonio-Exu.

Comunguei. A hóstia recebi de um frei muito jovem. O corpo de Cristo, ele disse. E o meu, para onde vai, caído no Largo da Carioca? Não sei, mas preciso acreditar. Uma mulher como eu precisa acreditar.

À margem do romance

Era uma mulher que tentava escapar de tudo.

sábado, 18 de setembro de 2010

Histórias demais


Problemas, poemas escritos em iídiche e não em hebraico. Para onde ruma o poeta com seu caderno? O homem quer ser autor. A mulher, escritora, e enquanto isso outros homens e mulheres digitam algo parecido com frases, mas eles não têm certeza, mal pontuam. Então alguém diz se não falar eu morro, se não ler desfaleço. Recomeça-se.

Os quatrocentos e noventa títulos que no Chile ninguém publicou. Um deles refazia a Odisséia. Era anacrônico. Que idiota querer ser Homero, rosna o editor, que só conhece as rapsódias I e IX. Inveja Ulisses, o astucioso, mas não há tempo suficiente para conhecer quem se demorou por vinte anos. Histórias demais, ele pensa, para depois voltar os olhos em direção ao filho. Acredita que somos como o bebê à sua frente, os dentes tão pequenos. Observa-o, belo e cruel, arremessando um carrinho amarelo na visita de um metro e oitenta, que paralisa.

Pequeno e grande são mais substantivos do que imagina a mãe. Nem vê o que acaba de acontecer, a violência. Melhor usar sapatilha ou escarpin no batizado?, ela pergunta. O pai do bebê não responde, está mais preocupado em perscrutar a visita, que por segundos, ele tem certeza, odiou um futuro ex-pagão.

O padre, o que lê. Corajoso, cita Moisés e lembra aos presentes como e por que Deus pediu a Eva e Adão que se retirassem do Paraíso. O pecado é sempre original, conclui o sacerdote, mas o pai, de pé, no altar, se distrai. Quer saber se na pilha de originais algo vale a pena.

Não conseguirá ler tudo. São tantos, e ele sozinho. E ainda alguns na antiga língua que não pôde aprender - aquela mistura genial falada por seu avô polonês. Precisa contentar-se com as neolatinas e um hebraico tosco assimilado ao longo de seis meses em Tel Aviv. Se Ulisses vagou por tanto tempo, os gregos de fato venceram a guerra?, pergunta-se.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O voo


Hoje de manhã, quando Marta decidiu morrer, logo descartou as duas primeiras opções que lhe vieram à mente: um tiro no peito e um coquetel de remédios. Maneiras nojentas demais de deixar o mundo. Melhor o gás.

Além de sabê-lo indolor, tem certeza de que será um método bem mais eficaz que os outros dois, esses sim desastrosamente experimentados em outros tempos. O que poderá dar errado em abrir a válvula do aquecedor de água, esticar o cobertor sobre o piso frio do banheiro e se deitar ali?

Não sabe em quanto tempo vai desmaiar, nem se morrerá dez, trinta ou cinquenta minutos depois. Poderia ter pesquisado sobre o assunto, mas prefere não saber de nada. Acha ridículo quem se especializa em métodos de suicídio, e talvez por isso continue viva. Acredita, ainda assim, que o suicida precisa fazer a sua parte para chamar atenção da morte. Dessa vez, Marta se basta com um certo ar blasé na ação de morrer com um livro, mas não um livro qualquer. Quer adormecer embalada pelo cheiro de gás enquanto lê a Odisseia.

Desde que começou a lê-la, decidiu que vai morrer em grande estilo, como uma deusa, mas parece ter se esquecido de que deusas não morrem. Imagina-se voando como o faz Atena na Rapisódia I. “Atou aos pés belas e divinas sandálias de ouro que, com a rapidez do vento, a levavam por sobre as águas e a terra imensa.”

Sente desejo de morrer por essas palavras, ou melhor, como elas. Atena, seu voo e seu rumo. Com que vontade desce do Olimpo para a Terra? E com que força transforma-se em pássaro e volta para o monte após uma temporada entre os homens?

***

São quatro horas de uma tarde de sábado. Marta está de pé, em frente ao espelho do banheiro, e penteia os cabelos curtos. Sua pele é a mesma de sempre – poucas rugas, olheiras fundas, nenhuma surpresa.

O gás faz seu trabalho em silêncio, mas após olhar para os pés ela desconfia se a Morte está realmente a caminho. Desconfia também, e de repente, de sua certeza em querer morrer, embora seja essa a terceira tentativa de suicídio em cinco anos.

Quando a deusa se transforma em pássaro para retornar à morada celeste, Marta fecha os olhos, imagina o próprio voo rumo ao Monte Olimpo. Mas não vai a lugar algum. Encara os ladrilhos brancos, continua a ler. Encorajado pela deusa, Telêmaco, o filho de Ulisses, está diante do conselho dos anciãos de Ítaca. Quer convencer os velhos a deixá-lo percorrer os mares em busca do pai.

Minutos depois, Marta volta algumas páginas em busca do pássaro-Atena. Mais uma vez os olhos se fecham para abrirem logo em seguida. A Morte não chega e dá lugar à dúvida: morrer ou permanecer viva?

A suicida não sabe se quer mesmo morrer. Deixa de acreditar que voará como Atena e imagina o quão terrível será se, em vez de pássaro, seu corpo continuar exatamente como antes – ainda mais corpo sobre o edredon, tão sólido e imóvel como o livro que tem entre as mãos. Teme não ser acolhida por braços luminosos, fortes e divinos, nem sentir a mais vertiginosa das certezas, a de voltar ao seu pequeno monte. Então percebe que os deuses podem não querê-la por perto e que é inútil correr o risco.

Levanta-se, não sem antes dobrar a folha da página que está lendo. No espelho, vê uma mulher mais feia e sábia que antes. Está arrependida e parece dotada da força que só a literatura é capaz de incutir. Ainda que debilmente, deseja a vida. Quer ler toda a Odisseia.

Bastante tonta, desliga o gás, respira fundo e pega o livro. Em quanto tempo lerá tudo aquilo? Três, cinco, sete dias? Não importa, lerá o mais rápido que conseguir. Algo lhe diz que será outra quando Ulisses, o astucioso, cumprir seu destino. Vai ver, a intensidade com que ele luta pela vida pode ser útil à sua existência de ex-suicida.

Mal começa a andar, escorrega no edredon. Seus braços não alcançam a pia, enganados pelas pernas, tão mais rápidas. A mulher cai como um títere, o corpo projetado rapidamente para trás impele a cabeça a chocar-se com força contra o primeiro dos quatro degraus de mármore que separam o banheiro do quarto.

Marta sangra, mas não sente. Está desacordada e assim permanecerá para sempre, pois, embora tenha desligado o gás, não chegou a abrir o basculante do banheiro. Todo ar que vai respirar enquanto viver conterá o discreto e bem-sucedido assassino de uma ex-suicida desprevenida e sem sorte.

Não irá a lugar algum, nem mesmo cruzará a pequena fronteira de mármore que agora a separa do livro, arremessado para o quarto num voo canhestro após escapulir de sua mão. A Odisseia caiu com as folhas viradas para baixo, num ato de resistência e bravura, embora ninguém, a não ser o chão, possa lê-las agora.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

V


Os cantos das minhas unhas são fundos. Isso me ajuda em quase nada, a não ser quando se trata de seduzir um determinado tipo de mulher: a que tem por hábito prestar atenção a tudo e raramente fazer concessões. Repara nas unhas, sempre bem cortadas, nas cutículas serenas, nos dedos grossos. Comenta, não sem alegria, as veias saltadas.

Ana, no entanto, não se contentou com isso. Há três dias deixou sua marca na combinação de assepsia e masculinidade que cultivo há anos. Atordoada em seu ciúme, apontou um descascador de legumes, desses de aço inox, em minha direção. Como se possuísse uma arma mortal, investiu duas vezes o objeto contra o dorso da minha mão direita, escrevendo um V com sangue e lascas de gengibre.

O que mais faria com seu homem após flagrá-lo flertando em frente à barraca de legumes de manhã cedo, bem no começo da feira? Dar a ele uma vingança à altura do acinte. Acho que se arrependeu do que fez; suas olheiras estão mais fundas desde então e ela não se cansa de repetir me perdoa, me perdoa pelo amor Deus.

Pra mim, isso é pouco. Menos ainda quando penso que o remorso pode não vir do couro que me arrancou, mas do medo da marca que permanecerá aqui. Será que isso vai cicatrizar direito? Será que a mão dele vai chamar ainda mais atenção?, Ana pergunta a si mesma, em silêncio.

Por enquanto, esse V não passa de uma vagina inacabada, uma vagina que não pode falar. Nem coragem de fazer a racha você teve, eu disse a ela, o sangue escorrendo juntamente com a água gelada na pia da cozinha.

Hoje me acusa novamente, dessa vez sem motivo. Tem certeza de que eu comi a ruiva. Se comi, não lembro, respondo com cinismo. Ela respira fundo, olha ao redor e baixa o tom de voz. No entanto, não há ninguém conhecido: homens e mulheres bebem seu café como se estivessem sozinhos em casa. Ana se constrange perante rostos estranhos, esses sim dignos de alguma compostura.

Agarra a minha mão, coberta por gaze branca e dois pedaços de esparadrapo, forçando-me a baixá-la e deixar o copo sobre a mesa. Vejo sua boca entreabrir-se e, num jorro, deixar sair perdão, nunca duvidei de você, não de verdade, você sabe que eu não posso te ver conversando com mulher, que eu fico louca, vamos pedir a conta, eu cuido da ferida, passo uma pomada, prometo que vai sarar. Vem comigo, depois deixo você fazer o que quiser, deixo até você ir embora.